terça-feira, 22 de julho de 2008

Hoje, levada pela solidão do quarto escuro, me vêm na memória, os dias em que em minha casa ao faltar à luz, nos reunimos para ouvir histórias da família. Eramos três meninas e nossos olhares estrelinhas brilhavam de curiosidade. As histórias não ensinuavam nenhuma lição de moral ou final feliz.Eram completamente politicamente incorretas. Meu pai nos contava histórias de suas estripulias quando criança, suas brigas com os irmãos, os apelidos uns dos outros.
O que em mim ainda resta desta infância? O que em mim trago do meu pai? Imediatamente me vêm a memória, nossas idas a praia logo depois da separação de meus pais. Ele, eu com 20 poucos anos e minhas irmãs adolescentes,iamos para Saquarema, levando um frango de padaria e disposição para se expor ao sol durante todo o dia. Eu, ia na frente do carro quando as minhas irmâs deixavam. Confesso hoje, que sempre apanhei das minhas irmãs mais novas e cresci obedecendo as duas, ou melhor fingindo que obedecia, por preguiça de brigar. Elas são boas de briga.
Ia na frente cantarolando com meu pai, músicas que nos diziam coisas diferentes, mas que uniam nossas gerações.Cantavámos Elis, Chico, Vinicius, Bethânia, Gal, Roberto, Cartola.( Mal sabia meu pai, que eu me despedindo de amores de menina começava a experimentar a dor do desamor e que algumas daquelas canções já podiam ser minhas.)
Essas canções, ele me apresentou quando tinha sete ou oito anos. Neste momento, minha memória me leva até o seu quarto, quando ele chegava prá lá de Bagdá da pelada de sábado, deitava na cama, ligava o som no quarto escuro e roncava o resto da tarde. Eu ia correndo, deitar ao seu lado, ficava quietinha ouvindo Elis e alucinando com a luz, verde e vermelha do aparelho de som.
"Sentindo o frio, em minha alma,te convidei prá dançar, a tua voz me acalmava,são dois prá lá, Dois prá cá..."
De repente minhas lembranças me levam para o dia em que meu pai me deu a letra de " o mundo é um moinho". Eu devia ter apenas 22 anos, mas a letra batida à maquina, de texto tão intenso, já tinha sentido para mim. Tempos depois ouvi emocionada, uma história que não sei se é verdadeira, que Cartola havia feito esta música para sua filha.Passei a amar ainda mais esta canção e não quis investigar a veracidade da história.
Aprendi muito com meu pai, e ainda aprendo. Não foram poucos os seus erros e tentativas frustradas, mas também foram muitas suas apostas.Acho que com ele aprendi a continuar sempre apostando, a recomeçar.
Me lembro com orgulho de suas invenções, de suas estratégias mesmo que atrapalhadas de conseguir sobreviver inventando negócios de todo tipo, sem o chamado 'capital de giro".
Trago muito do meu pai no que sou. Somos muito parecidos:somos boêmios,amamos uma boa roda de conversas com amigos regada a cervejinhas, defendemos de forma quase insuportável nossos pontos de vista, amamos músicas intensas, temos uma tendência ao exagero e necessitamos de paixão.Somos arianos nascidos no mesmo dia.

A mais importante lição que tive na vida, aprendi com meu pai, aprendi amando o meu pai, aprendi a gostar do que não se enquadra, não se adequa, aprendi a gostar da humanidade.

2 comentários:

Tchello Melo disse...

As lembranças são precisas e inexatas para que a vida alcance algum sentido.

Viva o vintessete de março!

Fernanda Bortone disse...

Viva!!Sempre viva!!